É infinitamente belo ser infante,
porque não se está confinado pelos grilhões da palavra.
É ser como os lírios do campo.
É ser puro sem saber o que se é,

porque só avista a inocência quem a perdeu.

quando pensar é desenhar na mente
um universo que só existe na cabeça,

somos livres

porque não devemos nada
nem aos outros nem a nós

e quando olhamos para o sol,
sabendo, sem mais, que nascerá de novo amanhã
temos por mãe a certeza.

E é tão belo saber que temos mãe,
que temos um colo onde descansar.

Mas há um dia em que crescemos
e ficamos de repente longe do peito e da mão
que desenhava na areia um coração

Crescer é não ganhar nada mais que altura para ver ao longe.
Porque crescer é perder um mundo em troca de outro
E quando crescer é fechar os olhos do coração,
deixamos de falar de cor
e passamos a precisar de ajuda para ouvir.
Ruídos que eram familiares deixam de o ser
porque passam a soar baços,
arranhados e desfigurados
como as recordações que estavam esquecidas.

E quando por fim chegamos a velhos, vimos sem nada
e a menos que saibamos chorar o luto
da criança que fomos outro dia,
chegamos a mortos sem ter sido vivos.

E o que haverá a dizer dessas vidas?
Que nunca foram uma coisa ou uma outra.
Nem infantes nem velhos, foram o imediato?
O que se presta ao ouvido mas nunca à voz, que é imune,
porque nunca pensamos em nós no mundo, mas no mundo em nós.
Por isso somos grandes pequenos e pequenos  gigantes.
Nunca somos suficientemente experientes ou novatos para a lida neste mundo.

Chegámos  e o filme ia a meio.
Ninguém traz livro de instruções ou mapa para a jornada.



Corro atrás de mim incessantemente
mas vivo atrasada
e persigo o eco de mim.

Procuro a minha sombra,
mas é sempre meio-dia
e os despojos de ontem estendem-se ao amanhã
que é sempre hoje.
E o hoje nunca é porque sempre se esvai antes de ser.

Fico a sós

com o mundo a fugir-me a cada instante
e tento esquecer o tempo,
mas falho
porque o tempo sou eu e eu sou o tempo.
Por isso fujo-me de mim
e sou sem ser o ser lá fora
porque estou cá dentro e não lá fora
e olhar para dentro de dentro
não é como olhar de fora
e quem está fora não vê por dentro.

Eu vejo cá de dentro

porque cada dentro
quando está lá fora
não está lá fora mas cá dentro.
E com isto sou forçada a cerrar os lábios
porque o que quero gritar
está aquém da palavra
e além do pensamento.

Pensar o dentro cá de dentro dói
porque pensar o dentro sem estar dentro nem fora
é ficar em carne-viva,
porque se vai para fora sem sair de dentro.
É querer sair para o mundo,
mas o mundo sou eu e eu sou o mundo,
se me deixar trancar por entre um jogo de espelhos
que reflecte tudo e o nada até ao infinito.

Mas onde fica o infinito?
E onde fico se fico no infinito?
Para lá da palavra não posso
e por isso estou presa na casa do mundo.

Mas onde fica essa casa?

Calo-me
falante de outros modos
que não estão senão no âmago do tudo
que é inefável.

E por último páro.

Quanto mais fujo
mais me aproximo de mim.

Perplexa

diante de mim
vejo-me e firo a vista
por ver de cada vez pela primeira vez.

Falta a tua mão...

Tenho dois archotes.
Falta a tua mão.
o calor só faz sentido se for um pacto a dois
como o sangue que corre nas veias e vem de dois lados de um só coração.
como a música que tem harmonia e melodia.
como dois espelhos que de frente um para o outro refletem o espaço infinitamente.
quero que saltes este salto com a mão enlaçada na minha
quero que caias nos meus braços e que me deixes embalar nos teus
porque o amor verdadeiro só termina quando a morte nos lança nos braços de um outro amor infinitamente maior e mais perfeito. Até lá, caminhemos os dois os passos um do outro, sejamos um só coração e uma só alma em todas as provações. Sejamos um só bote nas tempestades e mais, sejamos juntos, tudo o que nesta vida há de bom e de belo porque o Alto assim o quer. Aspiremos ao Alto e sejamos de amor.Todos os segundos da hora, em todas as horas de todos os dias.

Specula

A morte já não se soergue como soía.
Espero-te no Alto em cujo colo acalmo as lágrimas
e vejo-te o rosto vivo
como se nunca tivesses trocado este mundo por um outro.
E se nos vês, o que verás das alturas?
Redondo, o infinito?
Ou um leque de abraços por dar
aos quais só resta a forma epistular nunca findestinada?
Permanece a saudade, mais nada.
Um sentido forte de eternos reinados de absurdidade
condensados num segundo:
O da decisão.
Da tua alta e só solitária torre desesperada
saltaste sem rede, mais nada.
Haverá melhor sítio para estar que aqui? Leva-me contigo ou então acompanha-me. Senta-te a meu lado e olha comigo para longe... Se não te vires olha para o lado, para mim. Não me moverei até que te revejas e sorrirei sempre que me encontrar na tua procura.
Porque hoje posso dizer que tudo o mais não importa se tu és aqui e agora. Seja o que for... Será a teu lado.

dizia ao espelho para me convencer que um dia tu mesma o dirias.

Fico contente por te saber, e por saber que sabes de mim e do meu coração
apesar de seres como uma espada de dois gumes 
que mata mas também arma cavaleiros e ergue reis

e se alguma vez falhaste, não pude ver, porque estava toda posta em ti
no teu olhar

nem sempre me revi, mas não pude ver porque tu eras eu e eu era em ti e para ti.

ainda que me atraiçoasses constantemente.

como é que é suposto deitar um mundo-chão fora? Como é que se arranja outro?

lancei-me de uma janela alta, mas tudo o que aconteceu foi cair no mesmo chão.
A vida é ingrata quando é uma luta inglória com o nosso reflexo,
e pior ainda quando a luta é com o nosso umbigo.

mas há quem nasça enrolado no cordão umbilical
e fique assim até reparar que nunca teve sequer umbigo.

Quanto a mim, não sei. Prometeram-me um mundo-chão e um umbigo só meus.

Eu acredito



 

lingua morta

Escrevi-as do meu sangue, as palavras desta carta em que vendi a alma em prol de um outro alguém. De corpo amputado sinto dores fantasma de um coração que dei.
Falar sem voz é perder o ouvido que tinha para a música.
E perder a música da vida é morrer insaciado.

Sentir a vibração do meu fado como se não possuísse para ouvir senão o coração
é  sentir o meu bater  que significa que não estou junto do teu
e passo a bruma da noite a imaginar como serias perfeito sem saber

por isso calo no colo os gestos de amor que tinha para te dar.
Guardo-os porque estás morto. Espero pelo teu fantasma e calada desejo-o
ainda mais do que desejei tudo o que era teu.

Por cá vou vivendo desmembrada a vida de quem já morreu
porque quando voltares, essa morta já não serei eu.



 

HNSR-24/01/2012-revisto

Veio de longe reclamar o que é seu
pé ante pé
O antigo dono morreu

Nas prateleiras ainda havia arroz e farinha
e do nada toca a telefonia
assustadora
não por tocar ou por ser uma telefonia,
mas por pertencer a uma morte que faz o todo suspender-se.

era noite

a morte ceifou-o a meio do filme

a última vez que foi às compras
comprou coisas para passar a semana
mas não contava ir-se a meio

é assim a morte.

não avisa quando vem.
é como as visitas indesejadas, sempre inconveniente.
mas o jovem curiosamente sabia disso
e esperou
esperou como os abutres
ainda que não se tenha esforçado

mas sabia tão bem como a vida é volátil
tão bem como as efémeras que só vivem um dia, mas fazem-no em esplendor
que é o que falta à volatilidade do jovem quando não tem amor.

Segue viagem vazio e despeitado
para um dia deixar a fita a meio e ir-se
não sobrevivendo à farinha e ao arroz para a semana.

De repente estamos a sós com a verdade
e somos, por segundos transparentes,
espectadores da nossa própria condição

ah, momentos de ouro em que me vejo sem máscaras

mas será simples e só assim?

o que se esconde no escuro e não refulge também é meu
então vou ao espelho

e assusto-me

afinal era só eu
Chega o dia em que a falsidade cai
e somos assombrados porque nos tornamos só um
e sorvemos deste corpo desnudado
(que é de mulher)
o leite de uma maternidade tardia.
mas como o fruto colhido do chão,
está pôdre, tocado, macerado este leite, este seio.

tu feito fogo e eu desnudada finalmente nos separamos
mas não pode ser sem mácula porque já não somos inocentes

vimos o que estava escondido
violámos as leis do pudor
em troca de um amor que era falso
que queríamos beber
mas que não passava de pó
areia num deserto que o fazia parecer maior
mas que era um colosso de vento
uma tempestade sêca como um dia frio de inverno
ou um outro demasiado quente de verão

sabemos que os opostos se atraem
e fomos esse instante mágico
em que uma metade encontra a sua completude

fomos a perfeição e rendemo-nos aos braços nus um do outro
mas estava tão certo que se tornou inconcebível

porque era proíbido.

Sendo multidão, sendo ninguém
torço-me  para ir além
e como se num espelho caísse
engulo tudo o que não disse
por não caber mais dentro de mim
Sinto o corpo agrilhoado
mas a minh'alma lança-se para lá de si
e como se me recuperasse a mim
sinto-me pássaro num pôr do sol carmim
De todas as estrelas, a tua é a que já não me alumia
e da nudeza do céu puro e correcto retiro os olhos para te recordar
faço da tua morte um salto, um  grito.
Que eras tu e só tu o meu bastante
e agora a tua falta não chega para me esquecer desse outro dia
em que «amor» era uma palavra que ardia na tua  boca.

cinco anos de silêncio e uma tal de falta

E parecia, sim, que a vida tinha perdido alguma cor Que o frio gelava mais,  que o sol já não brilhava da mesma forma E eu só queria que me ...