Chamaram-me e só ouvi
num relâmpago a escuridão
A luz foi-se como se fosse
Areia da praia na mão

O vidro estilhaçou-se
A minha alma em cacos no chão
A força a tentar compor-se
Coragem na solidão

Profunda a vontade de ser
estica-me o braço, estende-me a mão
Quer que me dobre sem ceder
Erguendo-me de novo para então

Enfrentar o adverso
com destemida prontidão
Inteira como o Universo
infinito em extensão
No meio de um ruído espesso
Procurei o sentido da minha voz
Procurei o corpo dos meus pensamentos

Mas não havia corpo no sentido
nem voz nos pensamentos

Tinham corpo os pensamentos
Magoado, dolorido
Mas continuava a não haver
Nem corpo nem voz para o sentido

O que se ouvia era ruído

Fez-se silêncio num repente
E de súbito distingui
A sombra da voz do sentido
Que no corpo macerado e dolorido
Entretinha por aí
Os cordéis da minha mente
Tocam-me na pele do espírito
e acordo assustada
do pesadelo que vivi

mas acordar é nada
quando se pode dizer
sim
também
o senti.

Quem dera os olhos só vissem
o que lá está

Quem dera a pele só sentisse
o que é daqui

agora eu não me sou

Assaltam-me as paredes de um grito
Tão profundo por dentro que não se eclipsa
mas amaina
e quebranta poucochinho
num sentido embalo imaginado
que me diz:
por ora e adiante, tudo será bem.


Fiz um cálice das minhas lágrimas
traguei-as pois então
e senti nas minhas veias
correr a bílis da escuridão

Contorci-me lutando
quis arrancar de dentro
o luto de mim

E a vida foi andando
foi correndo
à minha frente
procurando-se
enfim
O silêncio canta-me ao ouvido
silente ouço ruído

onde foste, canção?

A voz evade-se na escuridão
podia haver eco
mas por ora não.

Num repente volta a voz
mas de novo a consome
escuridão

Silente sinto fome
de quando era feliz
esses dias de Verão

Não voltam agora

Algum dia voltarão.
Quebro o rosto em lágrimas
os olhos
vítrios
nada de nítido conseguem agora ver

A água salgada escorre-me pela face
mas ignoro o frio
porque rima com o que trago no coração

um vazio imenso
escuro
profundo

como a noite sem candeia
que só a lua alumia
com uma ou outra estrela

O jardim que sempre ali esteve
ganha um novo sentido

As flores hão de florescer
e entre o meu pranto
e a sua alegre inocente candura
outros olhos lhes acharão a fermosura



O Barqueiro

Peço ao barqueiro
que pare de remar

não quero ir por í

Na outra margem
reina a danação
prefiro leixar-me aqui

Das portas não passarei
digo-lhe

Mas já pagaste o óbolo
diz-me

Então peço-lhe
leixe-me por aqui, leve o óbolo,
que hei de subir sem esse lastro
ou com outro rio me leixar ir.

Dito isto ora percebo
que estou presa e não concedo
mas o barqueiro sou eu

cinco anos de silêncio e uma tal de falta

E parecia, sim, que a vida tinha perdido alguma cor Que o frio gelava mais,  que o sol já não brilhava da mesma forma E eu só queria que me ...