O Pai

Aquela florzinha pequenina que apanhava para dar à mãe não ficou na fotografia

É que o pai, que a segurava quando eu a colhia

Também era quem apontava a câmara e estava lá mas não aparecia.

Tessitura de doer

Permanecerei aqui

depois de apagadas as luzes

depois de o vento amainar

fico cá com o que sobrar


É que o que é sorte não te calha a ti que és forte


Tudo foi esforço, se querem saber!

Fácil é a vida dos outros


Se sabes melhor não te cales,

Não te cales na mentira!


A vida é dura tessitura de doer

É do princípio ao termo 

falta e sofrer

Mas mais vale a liberdade que estagnar e morrer


Só me intrigo que não ouço

alguém dizer isso

de quem vi estar à beira da estrada

em que se erra até perder.

Dá-me Tu a mão

Procurei por todo o lado

Procurei nos novelos de palavras com que se tece o real

Um fio dourado que me enviasse ao fim do labirinto


Não sou de mim

Se sofro, minto

Ponho um sorriso e finjo que não estou a acontecer

Anestesia-se em mim a razão que faz doer e então sou forte

Resiliente e exemplo a ser


Mas se sou assim, se deixo de sofrer em mim

Passa o real a sofrer afim

à minha dormência, ao meu doer


Tanto nos dizem que a vida dá

Tanto que prometemos

que seremos

faremos e saberemos 


Eu cá estou só cansada


É que nunca acreditei em nada do que ouvia dizer

E com alguma razão...


Estou cansada, Senhor!

Dá-me Tu a mão!!


Anoiteceu

Eu tento, insisto e experimento ser Eu

mas algo há

que como um vento me atenta, agita, violenta


Cada qual tem algo de especial e de seu

Mas a mim, não sei quando,

levaram embora o especial que era meu


Não soube como era, nem quem, nem qual

Nem como foi que aconteceu


Mas houve um dia inteiro

Solarengo e prazenteiro 

Que durou, que correu

e que

agora

assim meio que murchou e se esbateu


Não sei como é que foi

Não sei que aconteceu


Mas o meu dia solarengo

Anoiteceu

As folhas da minha infância

Na minha infância escrevia em folhas

onde desenhava também

Eram completamente brancas,

sem linhas, sem quadrados

e assim estava muito bem.


Hoje, as palavras caem tortas pela minha vida adentro


As folhas da minha infância tinham muito espaço para escrever

mas as de agora,

onde me fiz adulta,

são folhas de rascunho com tretas atrás 

que eram para o lixo mas que insisto em usar


O que não está certo é que já não haja

espaço para que as folhas sejam completamente 

brancas


Também não está certo querer olhar para trás, para o que está escrito e não fui eu

E tentar ver se vejo aí o que hei de escrever à frente

O Texto

O Texto é sempre um pretexto para re-ser

re-ser-se corpo na pele de outro corpo

-o corpo outro que nos está a ler-

Que nos vai saber corpo a partir do escopo

do texto-mente com cujo corpo 

textualmente se mente tão bem


O Texto é raro 

Porque o escopo que lhe dá corpo também, 

-O corpo ideia que medeia o que não é corpo 

com o que incorpora tão bem-

E então compreende-se no outro 

que se separe o corpo do texto 

do escopo-corpo também


O Texto existe aquém do que vai além

Aponta para o de-lá

Diz abundante o que não detém

E torna presente o que cá não está


O Texto a ser é peculiar

Prediz que o que há por imaginar

tem sítio para ser e sítio para estar


O Texto é semente

que quem escreve sente 

planta 

e cuida de ver germinar.



Valentes por termos Sentido

Vai que agora já não estávamos confinados ao corpo, oprimidos...

Largavas o álcool, os comprimidos?


E agora que te digo que podes a liberdade,

Que és a mão que a detém...

deixarias que te abraçasse alguém

sem as meias medidas que inculcaste

imbuídas de exceções à Verdade?


Deixavas as premissas suicidas

com que nos querem cegar?


Parámos um pouquinho, mas agora,

Estamos entregues aos dragões

Que nos sorvem o direito à nobreza de estarmos tristes 

envenenando-nos com um bem estar falso,

postiço e tóxico?


Chora!

Chora até as lágrimas te volverem a tornar humano

Para que volvas aborrecido, 

do primado do ócio.

Chora!

Até ficares estarrecido

Até estremeceres 

por teres compreendido

Chora!

Para que sejas então Valente 

por saberes e teres finalmente

Sentido!



Nunca me abraçaste (Ficção Poética Breve)


Há dias que me revolve a sensação de uma noite interior. E não, não me lembro quando se instalou. Talvez tenha de ser mesmo assim. Às voltas com os papéis procuro palavras que me resolvam definitivamente esta impressão de estranheza. Hoje conheci outro de mim. Ao olhar nos olhos o reflexo do meu próprio rosto encontrei um outro rosto desconfortável, que vinha não me lembro bem de onde, que se foi aproximando até estar perigosamente perto. Era um eco real o suficiente para se diluir fatalmente por entre as palavras que me têm visitado num sonho…
                                                                                                                     Branco. Quando se entra no quarto a impressão é de branco. Talvez cru, ou a nudez no pano da tela a monopolizar o espaço. E acordar, devagarinho. Demorar-se como a luz que resgata a brancura da pele das coisas. Pena que não tenha pele, eu. Pena que não tenha pele e seja o paradoxo, que me ponho na pele de toda a gente, de todas as coisas, de tudo o que há.

Ali, espelhas-me nitidamente. Vejo no teu rosto vítreo a transparência de espelho que se estende ao pano opaco de uma tela que pinto todas as noites, para depois me despojar dela e arranjar outra, de novo crua, opaca, branca. 

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Em todas as noites que terminam me recolho a esta ilustração a que me devolves como as entrelinhas de um texto. Quando te leio vejo-te o rosto, a respiração, o compasso acelerado a pulsar nas veias… Mas não devia ler às avessas.
Tu podes, que não estás do avesso. É por isso que te rasgo a tinta ao longo daquelas  páginas , para te esvaziar depois, mas preencher primeiro.

Dou voltas pela sala e reparo que, na minha mão está cerrado um caderninho em branco, sedento de tinta. Sento-me a um canto no chão e sinto o espírito fender-se-me devagarinho. A sala torna-se difusa e, aos poucos, vou-me misturando com os contornos do espaço. Tenho sono, vai-me embriagando a dormência até que já não sinto senão o caderno a incorporar-me por dentro das palavras até ver novamente o espaço em branco onde o que há é 
                                                                                     
                                                                                                       Azul… Ali um pouco de carmim. Sim, carmim. Aqui…Prússia! É isso, Prússia. Confessa lá, sempre gostaste de Azul da Prússia. 
Está correto. Vamos terminar… No fim talvez se veja o que ficou em branco. 

E por falar em branco, preferias ter ficado em branco? Eu cá sim. Fico muitas noites em branco, só a tomar o gosto das texturas. A sensação de 
                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez
                                       
                                                                                                                                             O lençol esticado onde me deito e que ora arranha, ora se enruga, continua a ser pano cru. Sempre.
Desculpa-me! Onde íamos, outra vez? Ah, sim! A Prússia. As noites em branco… Hehê! Curioso, há noites em branco na terra desse tal azul que combina com carmim.
Ah…! O estender da tinta pela tela, a pele que se estende… O corpo todo!
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O corpo todo que pesa, que pesa… Não, espera! A luz… 
Pesam-me as pálpebras, como de resto todas as vezes em que acordo. Parece que terminou o namoro com a forma dos sonhos. Sempre gostei da forma como me envolve o pintar do teu retrato… do teu corpo todo que incorporo alheio em mim.

Tenho saudades da minha mão firme. Não sou capaz dela, por agora. Não sou capaz de ver claramente os outros que aqui estão… Parece que a vida lhes foi suspensa. Os olhares são essencialmente vazios. O caderno está pousado ao meu lado, vazio também. Temo que mo levem. 
Neste instante ouço sonoros os gritos no corredor pentagonal que os meus passos engolem agora furiosamente, numa perseguição louca: “O caderno não! O meu retrato…! Não mo vais roubar, não me vais levar o rosto, não te atrevas!”
Sinto o impacto pesado dos corpos no chão. Não controlo os braços que golpeiam o ladrão até que já só há a vertigem da minha respiração ofegante. Morto? Como assim, morto?? Não, Não… NÃO!! Larguem-me! Ele não pode… Não! Não o matei, não me levem… o caderno, o ca…der..n… O…ca..de…rn…

Não sei como vim parar aqui. Não há janelas, nem ângulos nas paredes. Há correias na cama, mas não há lençol. Trocaram-me a roupa… ouço-te a voz meiga
                                                                                                                           Bom dia, minha flor. O beijo na face , como sempre. Os beijos fazem um barulhinho curioso. Às vezes rio-me com o eco desse barulhinho. É curioso como os ecos não se veem até se manifestarem. São como reflexos de presenças que já lá não estão… 

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“-Está na hora!”
Oferecem-me pastilhas.
E foste… E já cá não estás…! Ficou quieto um esboço inacabado escrito na pele que beijaste… Um eco.
                                 Resiste à ausência até ser noite e entrar por mim adentro para me abandonar ao abraço do leito suave. 
Este sono meu, que suaviza o caos interior não tem, como os sonhos, textura nenhuma. E é uma tessitura sem ser tecido. 

                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez…
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Aos poucos volto a acordar. Percebo um burburinho atrás das portas do corredor. São eles, vão dar a notícia aos que vêm aí. Pensam que não se ouve nada aqui dentro. Explicam que foi um acidente. Que a ninguém pode ser imputada a culpa. Que tomaram medidas pesadas, apesar de tardias. Que estou a ter o que mereço. Que não há mais nada a fazer. Que lamentam mas é assim, nestes lugares… Acontece. Sinceros pêsames. E vendo bem, até foi melhor assim. Era um sofrimento muito grande. Não sofres mais. Ponto final. Vão-se embora. Abro o caderno. Estúpido caderno! Não me reflete bem agora, assim manchado de sangue…
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Movo-me irrequieto. A janela abre-se num repente, os meus papéis esvoaçam sem ordem e sinto-me levar com violência pela intempérie. Luto contra o rapto, mas já não sou um corpo, já não tenho forma. Falta o ar, mas já não respiro, revolvo-me! Estou à mercê deste voo alucinante, sinto o ar a chicotear o texto em que me retratei inacabado. Procuro alcançar o caderno, mas não o alcanço, foge à mercê da tempestade. Num outro repente tudo fica branco, com um clarão.
Acalmo-me. Apercebo-me de que já não tenho peso, porque não preciso. Agora todo eu sou a sensação das texturas de 
                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez…
Preenche-me uma angústia inominável. 
Dobra-se-me o estômago, revolvem-se-me as entranhas e tento gritar, mas não posso! 
Porque acordei numa golfada de ar e foi só um sonho. 
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Escrevo realmente sonhos ou faço escrita uma realidade sonhada?
Estou desperto para a evidência de que adormeço e acordo para adormecer outra vez.
Procuro-me na tua clareza, naturalmente. Estás agora do avesso dentro de mim, ou sou eu que agora estou dentro do avesso de ti?
Olho para ti sempre em busca da imagem do meu rosto…
Meu reflexo, meu amor, foste todas as cores. Foste todos os tons do teu eco… Mas mesmo sendo eu lá fora, não foste o eco de mim. 
Nunca me abraçaste. 
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Estás cada vez mais frio, estás cada vez mais longe…
Já quase não sinto o caderno cerrado nas mãos contra o peito.
Parece que ainda ontem te matei. 
Ouço-os ao longe:
                             “-Há quanto tempo?”
                             “-Há já meses… Sem uma palavra.”
                             “-Sim, com as próprias mãos… e uma caneta. 
                             “-Sim, no caderno.”
                             “-Se há problema? Não, cremos que não. Já so fixa o olhar no vazio…”
                             “-Em princípio não dará problemas, mas não toquem no caderno, seria…  Terrível.”
                            “ Como? Como uma segunda morte, ou pior... 
                                                                                                             como o texto uma outra vez”

                             

Por Inês Gomes

cinco anos de silêncio e uma tal de falta

E parecia, sim, que a vida tinha perdido alguma cor Que o frio gelava mais,  que o sol já não brilhava da mesma forma E eu só queria que me ...