Canção para o morcego

Abri a porta da cave. Já dizia a minha mãe, que quando fosse maior, veria a cave com outros olhos. Mas que disparate! Que olhos diferentes destes terei? Pó e escuridão. Grande coisa. Fechei a porta. Vim embora. Fui correr no parque. Rebolei num chão partilhado com gargalhadas de mil caras. Brinquei na gravilha e gastei o oleado dos baloiços. Zanguei-me e defendi heroicamente a reputação da minha boneca, mas traiu-me, a malvada! Afinal, era uma imitação. Mas que aborrecimento dura mais para mim que não poder brincar no parque? Está a chover. Abri a porta do prédio. Não há luz nas escadas, mas não faz mal; sei que os degraus são dez. Puxei da chave. Sei qual é de cor. Abri a porta de casa e acendi logo a luz. Não suporto a casa às escuras. Fiz hoje uma traquinice. Subi a um banco pousado numa cadeira em cima da mesa da cozinha. Escalei o everest. Sentada no castigo, levantei-me desafiante. Uma palmada? Não me importa! ...que não saberei de que terra sou... Bem, deixa-me lá sentar outra vez, que essa deve doer. Anda um bicho qualquer na cave. Faz imenso barulho. Deve ser um morcego, ou um rato. Abri a porta da cave. Levei uma lanterna para ver. Não encontrei o bicho, nem escutei o barulho. Fechei a porta. Vim embora. Há um buraquinho no chão da sala. Dizem que é caruncho. Vêm cá arranjar na sexta. Já não há chão na sala. Tentaram colocá-lo de novo. O morcego deve ter fugido. Há luz na cave...Vem do everest.

1 comentário:

Inês disse...

Poderia comentar. Sim... poderia comentar. Mas que comentário haverá para isto?! O teu caminho é-me tão familiar. As lágrimas que cantas, pequenas flechas de sentido. Com a tristeza de uma fenix que nunca chegou a ressurgir das cinzas. Que te posso dizer? Roça o sublime cada palavra que escreves, e passam em rodapé nas minhas mãos, numa lenta corrupção que, apesar de tudo, não vou limpar. Vou guardá-las, aqui comigo e talvez assim me possas sentir também um pouco mais, aí contigo, e verás que sou o sangue que escorre nessas paredes; o suor do esforço de tanto existirem.

Um beijo.

cinco anos de silêncio e uma tal de falta

E parecia, sim, que a vida tinha perdido alguma cor Que o frio gelava mais,  que o sol já não brilhava da mesma forma E eu só queria que me ...